Entrevista com Patrick Reason – Reflexões sobre a visita à Ucrânia (Junho de 2025)
- Associação ECD
- 6 de ago.
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Este artigo foi traduzido do site da Plataforma Educacional Ucraniana: https://www.ukredu.org/en/post/interview-with-patrick-reason-reflections-on-ukraine-visit-june-2025
1. Desde o início da invasão em larga escala da Rússia contra a Ucrânia, milhões de crianças sofreram traumas, e muitas perderam suas casas ou famílias. Como a FICE International respondeu a essa situação?
A FICE International respondeu com empatia e ação, reconhecendo o imenso sofrimento que as crianças e famílias ucranianas têm enfrentado. Desde o início do conflito, buscamos manter proximidade com nossa organização-membro na Ucrânia – a Ukrainian Education Platform (UEP) – oferecendo solidariedade, diálogo e oportunidades de colaboração. A UEP, sob a liderança de Mariana Kashchak e Marianna Bilyk, sempre nos impressionou com seu profissionalismo e integridade.
Tivemos orgulho de incluir a UEP em nosso seminário internacional em Split, Croácia, em 2024, sobre atendimento informado por trauma, com painéis organizados pela Força-Tarefa Especial da FICE “Hand in Hand” e presididos pelo Dr. Alex Schneider. Esse seminário reuniu profissionais de diversos países de todos os continentes. Em colaboração com a Mulberry Bush Foundation, lançamos uma série de três treinamentos, com duas sessões já concluídas e a terceira prestes a ser realizada. Essas iniciativas estão alinhadas à missão da FICE de fortalecer os sistemas de cuidado alternativo e proteção infantil por meio da capacitação, troca horizontal e metodologias compartilhadas.
A FICE International não é um órgão financiador, mas sim uma rede baseada na solidariedade profissional. Acreditamos que nosso papel é amplificar boas práticas, criar oportunidades de aprendizado conjunto e caminhar ao lado de nossos membros enquanto eles enfrentam realidades complexas. A Ucrânia nos lembrou de que o trabalho de cuidado não é apenas técnico – é moral, emocional e político. Trata-se de preservar a dignidade diante da crise. E essa é uma tarefa que levamos a sério como federação global.
2. Compartilhe suas impressões da visita à Ucrânia. O que chamou sua atenção? Quais foram as principais descobertas ou percepções? O que motivou sua decisão de visitar o país?
Esta visita foi, sem exagero, uma das experiências mais impactantes e emocionantes da minha vida profissional. Ao longo de uma semana, viajei por toda a Ucrânia – de Lviv a Mukachevo, Dnipro, Petrykivka e Kyiv. Testemunhei a força de uma nação sob imensa pressão, mas também o calor humano, o profissionalismo e a clareza de propósito das pessoas e organizações que atuam no local.
O que mais me marcou foi o contraste entre a normalidade da vida cotidiana – crianças brincando, cafés abertos, escolas funcionando – e a presença constante do risco, das sirenes e do trauma. Conheci educadores que davam aulas em abrigos subterrâneos, profissionais oferecendo apoio psicossocial em zonas afetadas pela guerra e autoridades locais transformando prédios abandonados em centros de resiliência. A adaptabilidade e a coragem dessas pessoas foram extraordinárias.
Minha decisão de visitar a Ucrânia foi motivada pelo desejo de compreender mais profundamente as necessidades reais no local, para que a FICE International pudesse responder de forma mais estratégica e responsável. Também quis explorar o potencial de médio e longo prazo para consolidar uma seção nacional da FICE ou uma rede mais ampla de instituições em toda a Ucrânia. Foi igualmente importante fortalecer os laços com dois atores-chave: a UEP e o sindicato de professores ucranianos RGU, ambos em contato constante com a FICE nos últimos anos.
Fiquei profundamente impressionado com o trabalho realizado nos centros de resiliência, nas iniciativas de desinstitucionalização, nos abrigos para mulheres e crianças e nos programas psicossociais. Tudo isso está alinhado às melhores práticas e princípios que defendemos no Ocidente e na Europa.
Mas talvez a percepção mais profunda tenha sido que a Ucrânia não está apenas na linha de frente de uma agressão militar – está também na linha de frente de uma luta ideológica. É uma luta entre tirania e liberdade; entre a manipulação baseada no medo e uma sociedade que valoriza a dignidade humana. A Ucrânia está escolhendo defender o indivíduo: apoiar os fracos e vulneráveis; afirmar o direito de escolher; reconhecer o valor de cada vida – inclusive das pessoas marginalizadas ou em situação de cuidado. Em contraste com uma visão que reduz as pessoas a instrumentos do poder do Estado, a sociedade civil ucraniana está defendendo algo profundamente humano: a liberdade de expressão, de pensamento e até a liberdade de errar e buscar redenção. Esses são os fundamentos da vida democrática. Ver esses valores sendo protegidos e praticados sob bombardeio foi, ao mesmo tempo, inspirador e comovente.
Minhas principais conclusões foram: a Ucrânia não está apenas resistindo – está construindo. E o mundo tem muito a aprender com sua coragem, criatividade e cuidado com os vulneráveis.
Minha motivação para visitar a Ucrânia partiu da crença de que a solidariedade deve ser demonstrada presencialmente, especialmente em tempos de sofrimento. Como Secretário-Geral da FICE International, também quis compreender melhor como nossos parceiros estão atuando, ouvir suas necessidades e garantir que possamos apoiá-los de forma significativa. A FICE International tem grande interesse em formar uma Rede Nacional Ucraniana (Seção Nacional) no médio a longo prazo, para consolidar as conexões estabelecidas neste período de conflito e garantir continuidade no futuro.
Sou grato pelo convite para participar do encontro trienal do RGU em Mukachevo. Esse grupo competente e resiliente de diretores de escolas me fez compreender melhor os desafios de manter a qualidade da educação e o apoio às famílias durante o conflito em larga escala.
3. Você participou do painel “O Impacto das Redes no Desenvolvimento da Ucrânia”. Qual foi a principal mensagem que quis enfatizar? O que é importante fazer – e evitar – dentro das redes?
Uma das mensagens-chave que compartilhei foi que redes são mais eficazes quando são horizontais, e não hierárquicas. A força de uma rede está na sua capacidade de facilitar a troca entre pares, construir confiança na diversidade e manter agilidade em tempos de mudança.
No contexto ucraniano, vemos como organizações diversas – religiosas, seculares, locais e internacionais – estão se unindo de formas criativas. Essa diversidade precisa ser preservada. Redes não devem se tornar monopólios. Quando uma instituição tenta controlar ou dominar a rede, a inovação e a participação sofrem.
Também destaquei a importância da humildade na construção de redes. Nenhuma organização tem todas as respostas. O que importa é o reconhecimento mútuo, o aprendizado compartilhado e o respeito. Redes precisam ser cuidadas: dar espaço a novas vozes, apoiar transições de liderança e estar dispostas a ter conversas difíceis quando necessário.
Contei uma história no painel em Kyiv: no Brasil, dizemos que se colocarmos teólogos em uma sala para debater doutrina, eles podem sair divididos. Mas se colocarmos para falar sobre fome, violência contra crianças e a necessidade de cuidado, eles sairão unidos. O mesmo vale para redes. Foque na doutrina e haverá divisão; foque na necessidade humana e encontrará terreno comum.
Minha mensagem é simples: que as redes sejam espaços de confiança, generosidade e propósito compartilhado – não de competição, autopromoção ou controle.

4. Você compartilhou sua experiência de trabalho no Brasil. É possível construir pontes de cooperação entre mulheres daqui e do Brasil para fortalecer seu papel no cuidado e na educação de crianças?
Construir pontes entre mulheres na Ucrânia e no Brasil para um empoderamento mútuo é certamente possível, embora desafiador. Uma dificuldade é a barreira linguística – português e ucraniano não são amplamente falados fora de suas regiões – e também existem diferenças culturais a serem consideradas. Porém, acredito que nossas experiências comuns em contextos de risco, instabilidade e deslocamento oferecem um ponto de partida poderoso.
No Brasil, enfrentamos muitos desafios semelhantes aos que a Ucrânia vive hoje. Temos um grande número de migrantes e refugiados – principalmente da Venezuela e do Haiti – e também uma intensa migração interna das áreas rurais para os centros urbanos. Da mesma forma, a Ucrânia lida com enormes fluxos de famílias deslocadas, interna e externamente, devido à guerra. Em ambos os países, esses impactos recaem de forma desproporcional sobre as mulheres, especialmente mães solo, muitas das quais perderam parceiros para a violência ou para o conflito.
No Brasil, percebemos que apoiar as mulheres no seu papel de cuidadoras – sejam mães biológicas ou cuidadoras substitutas – é essencial para proteger as crianças. Separar crianças de suas mães ou figuras maternas deve ser sempre o último recurso. Trabalhamos arduamente para criar estruturas que fortaleçam e empoderem as mulheres que criam filhos em condições extremamente difíceis.
Há muito o que compartilhar da experiência brasileira – tanto das dificuldades quanto das respostas criativas. Os brasileiros são conhecidos pela empatia. Embora não possamos compreender plenamente o que é viver uma guerra, entendemos o que significa viver com trauma, pobreza, deslocamento e violência. Essa compreensão abre portas para uma troca significativa.
Talvez possamos começar esse diálogo caso a caso, identificando áreas específicas de interesse ou desafios comuns e, então, construindo pequenas, mas intencionais, pontes de colaboração entre profissionais, cuidadoras e sistemas de apoio nos dois países.
5. Que passos as organizações ucranianas devem dar para fortalecer sua presença nas redes globais de proteção dos direitos da criança?
A Ucrânia avançou muito na desinstitucionalização, mesmo sob a pressão da guerra. O que é único é como instituições ucranianas – religiosas, educacionais, culturais ou sociais – tiveram que transformar seus mandatos para responder a necessidades emergenciais, ao mesmo tempo em que continuaram avançando nas melhores práticas de cuidado e proteção infantil.
Nesse contexto, defendo que as organizações ucranianas não devem ser passivamente “convidadas” para redes internacionais de direitos da criança – elas devem ser ativamente posicionadas para ensinar e liderar. As experiências que trazem – trabalhando com crianças deslocadas, famílias afetadas por traumas e comunidades fragmentadas sob condições extremas – oferecem uma contribuição inestimável à comunidade global de cuidados.
Se as redes internacionais forem sábias, não hesitarão em incluir vozes ucranianas. Em vez disso, oferecerão plataformas para que profissionais do país compartilhem como se adaptaram, como romperam silos e como desenvolveram modelos holísticos e centrados na família em meio à crise. Isso não é relevante apenas para a Ucrânia, mas para qualquer contexto de conflito, fragilidade ou migração forçada. Assim como analistas militares estudam como a Ucrânia respondeu no campo de batalha, as redes de direitos humanos e proteção infantil deveriam estudar como o país adaptou seus sistemas sociais e de cuidado. As lições são urgentes, práticas e profundamente humanas.
6. O que você gostaria de dizer aos profissionais ucranianos, especialmente aos especialistas em proteção infantil (UEP), que trabalham diariamente em condições extremamente difíceis?
A todos os profissionais de proteção infantil, psicólogos, educadores e assistentes sociais da Ucrânia: eu vejo vocês. Eu honro o trabalho de vocês. Sinto-me humilde diante da sua coragem.
A realidade que enfrentam diariamente – alertas aéreos, deslocamentos, luto – vai além do que a maioria das pessoas pode imaginar. E, mesmo assim, vocês continuam. Continuam cuidando de outros enquanto carregam sua própria dor. Continuam criando espaços seguros em meio ao medo. Continuam imaginando futuros para as crianças, mesmo quando o presente é incerto.
Fiquei particularmente tocado pelo que vi no centro de resiliência em Petrykivka e nas instituições que visitamos em Lviv, Dnipro e Kyiv. Vi profissionais que não estavam apenas cumprindo tarefas, mas encarnando a compaixão. Vi psicólogos acolhendo traumas; educadores reconstruindo comunidades; famílias acolhedoras cuidando de dez crianças. E vi sorrisos, música, pintura, risos e vida.
Uma imagem que nunca esquecerei é de Dnipro: crianças brincando nas fontes, rindo sob a luz do sol, enquanto, a apenas 100 quilômetros dali, mísseis caíam. Isso não é negação – é desafio. Como Mariana, da UEP, me disse: “Vê? A vida é mais forte”.
Vocês estão provando que, mesmo em guerra, é possível cuidar. Que, mesmo sob bombardeio, sistemas podem ser reformados. Que, mesmo em meio à perda, a conexão pode florescer. A Ucrânia está ensinando ao mundo o que significa unir-se. Obrigado por tudo o que estão fazendo – pelo seu país e pelo mundo.

